Com sucesso das aulas, moradores do entorno começaram a pedir
para participar das atividades propostas por Noadias Novaes. Já são quase 30
estudantes ‘adotados’ por ela ao longo da pandemia.
Desde março de 2020, a professora Noadias Novaes, de 38 anos,
pedala em estradas de terra de Cruxati, no sertão do Ceará , para dar aulas a crianças e
adolescentes com deficiência . Coloca as mesas na calçada e, mantendo o
distanciamento social, propõe atividades pedagógicas.
“Quando
começou a pandemia, fiquei pensando: como vou prosseguir meu trabalho? Esses
alunos precisam de continuidade. Se eu parasse, eles
poderiam regredir na fala, na questão motora, na cognição. Como a maioria não
tinha internet, decidi ir de porta em porta ”, conta.
A
princípio, Noadias daria aula apenas para os alunos da rede municipal que
recebiam o atendimento educacional especializado (AEE) — modalidade oferecida a
pessoas com deficiência no contraturno escolar, para complementar o que é
ensinado na sala de aula comum.
Mas
sua iniciativa de “educação delivery” começou a se
popularizar na região . “Por exemplo: eu ia atender só o Evair [de 15
anos, que tem deficiência intelectual]. Quando chego, vejo que os irmãos dele
também querem estudar. Os pais arrumam todo mundo, me esperam e perguntam:
‘Você não pode ensinar mais esses daqui?’”, conta. “E eu vou dizer que não? Não
tem como.”
Só
na casa deste aluno, Noadias passou a ter uma turma de 6 crianças. Além dos
familiares dele, vizinhos também veem que ela está chegando e já correm para
participar da aula.
Na região, é raro que alguém tenha acesso à internet — os
alunos estão desde 2020 sem qualquer tipo de ensino remoto. Por isso, Noadias
“os adotou”, como ela mesma diz. Atualmente, já são 26 estudantes “extras”.
Inclusão de
verdade
“Eu
me sinto como se fosse numa sala de aula, fazendo inclusão. Monto currículos
que possam ser adaptados para todos os alunos, com e sem deficiência”, conta.
"Até
o município do Cura, por exemplo, que é mais distante, eu ando 40 minutos de
bicicleta. Aí, ensino 5 crianças em uma casa. Quando termino lá, prossigo em
uma estrada bem longa, até a casinha do Carlos Eduardo, que tem síndrome de
Down. Ele me espera junto com outras 11 crianças [sem deficiência]. Tem gente
da creche, da alfabetização e do ensino fundamental”, diz.
O que
Noadias está fazendo durante a pandemia, nas calçadas, é um projeto que, de
fato, respeita os princípios da inclusão. Em escolas regulares, é comum que
apenas se aceite a matrícula do aluno com deficiência, mas o mantenha
totalmente à parte do que é desenvolvido com a turma.
“Eu
separo todos os meus alunos em quatro grupos. Faço uma sondagem e vejo, por
exemplo, os que estão em fase de alfabetização. Podem
estar tanto os alunos de AEE quanto os sem deficiência ”, diz. “A partir
desses nichos, elaboro o material.”
No
Dia das Mães, as crianças de nível inicial pintaram um cartão. As que estavam
sendo alfabetizadas aprenderam a escrever um texto pequeno, com sílabas
simples. E as de fundamental I e II interpretaram um poema mais difícil sobre o
assunto. “São temas parecidos, que vou adaptando”, diz Noadias.
Ela conta que existe uma troca benéfica para todos. “Faço
estudos em pares. Quem está ajudando o colega também aprende”, diz.
Evair,
por exemplo, conta com o esforço da professora e com o auxílio dos colegas. Aos 15 anos, ele não sabia ainda segurar o lápis. Hoje, afirma
Noadias, o jovem já escreve o próprio nome e junta sílabas.
“Ele
tem uma deficiência intelectual nítida, mas que nunca foi diagnosticada. Foi
reprovado várias vezes porque não tinha um laudo médico.”
Ajuda
às famílias e colaboração da comunidade
As
famílias dos alunos de Noadias vivem em condições precárias. “São pessoas carentes que dependem do Bolsa Família e
que, às vezes, não conseguem nem o benefício por terem filhos com deficiência
[Benefício de Prestação Continuada - BPC]”, conta.
“Muitas
mães são solteiras, outras são donas de casa, sem emprego. Os homens trabalham
como agricultores e dependem da chuva para o cultivo.”
Para
ajudá-los, Noadias tenta dar orientações do que eles podem fazer para estimular
o desenvolvimento das crianças.
“Como
não posso encostar nos alunos, por causa da pandemia, peço ajuda e vou falando:
‘Olha, faça assim’. Depois, ofereço a merenda. Meu salário não é muito, né? Mas
compro milho de pipoca e cuscuz para a gente comer depois das aulas. É uma
festa.”
A comunidade inteira mobiliza-se para que o projeto da
professora seja seguro. Um microbiologista dá dicas de prevenção contra
Covid-19, uma enfermeira orienta as famílias, um radialista reproduz recadinhos
de Noadias em seu programa: “João está fazendo o dever?”.
Além
disso, a escola pública onde a professora trabalha
empresta o material usado nas atividades (cola, papel) e as mesas usadas
pelas crianças.
Professora em
formação
Noadias é formada em pedagogia, biologia e química. Deu
aula na rede estadual por 13 anos — em colégios e na Universidade Estadual do
Ceará —, até mudar para a educação infantil em uma escola municipal.
“Foi
aí que encontrei um aluno com síndrome de Down. Pensei: ‘Jesus, o que vou fazer
agora?’. Comecei a estudar sozinha, depois fiz um curso de 5 anos em Fortaleza
para estudar educação especial. Atualmente, estou terminando
neuropsicopedagogia”, conta.
“A gente vai caminhando e deixando nossa marca. Quando meus
alunos crescerem… nossa, eu até me emociono. Mas acho que vão se lembrar
daquela professora que ia para a frente da casa deles, né? Que eu sirva de
incentivo para eles continuarem estudando.”
(G1)
(Foto: Reprodução/Instagram)
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